domingo, 14 de abril de 2013

A Última Chance




Sabe a sensação de estar sozinho à noite, peito prestes a explodir, sem companhia? Quando a solidão de mil almas tristes lhe cerca, atenuando dor e sofrimento, o corpo sua, as lágrimas escorrem sem parar e você não vê mais razão para viver? Eis a noite...


Olhando a janela embaçada, avisto ruas vazias, esfumaçadas, numa mistura de calor dos apressados carros que disputam o primeiro lugar no semáforo intermitente e dos esgotos entreabertos, coletando o resto das águas de chuvas passadas. Essas coisas...


O apartamento é apertado, sujo, poucos móveis. Sentado à cama, cabeça contra a janela, mãos trêmulas, vejo passar o tempo, os quartos da lua, as estações do ano, a vida. Dos outros. Porque a minha, não tem mais sentido. Tinha. Eis o fato...


Ontem, fiz alguns ataques perfurocortantes. Sem qualquer dor. Nem em mim, nem nas vítimas. Sou bom no que faço. As pessoas é que não estão acostumadas a serem atingidas por mim. Pelo que causo nelas. Porque se tornaram tão frias, tão insensíveis, que atentados contra suas convicções racionais às vezes pouco surtem efeito. São mal interpretados, até. Daí, minha tristeza...


Há poucos anos, fazia meu trabalho diariamente. Incansavelmente. Não era recompensado, mas gostava do que fazia. Focava meu objetivo, esticava um braço, tencionava o outro, relaxava... e pronto. Voltava pra casa. Hoje, passo horas a fio, correndo atrás das pessoas certas e, quando consigo encontrá-las, não é surpresa quando suas armaduras de ceticismo rebatem meus ataques. Frustração, há. Mas nunca pensei em desistir. Até hoje...


Busquei meus últimos alvos. Pessoas comuns, de famílias comuns, sem nada de especial para oferecer. Apenas seus corações puros. Seriam os últimos humanos (de corpo e alma) na terra? Pensei que sim. Por isso, eu os ataquei. Antes que eles se tornassem frios e iguais aos outros. Crueldade? Não vejo assim. Eu... os salvei...


Quando o sol despertar mais uma vez e os seus raios iluminarem os corpos, espalhados pela cidade, eles já devem estar acompanhados por mais outras pessoas. Serão o dobro de amantes desconhecidos, conhecendo-se aleatoriamente, experimentando os prazeres da vida a dois, sem receios, sem medos, sem condições. Pois o que lhes proporcionei foi esquecido pelo resto do mundo. Estes terão a última chance. O último sentimento...


Talvez, assim, eu tenha ajudado a humanidade. Talvez, assim, eu desperte o interesse de outros iguais a mim, a continuarem o trabalho que insisti fazer, quando todos os outros desistiram, por achar que ninguém mais seria sensível ao amor. Talvez as crias de meus alvos alcancem a salvação e, a cada novo contato amoroso, mais e mais existirão. Esse foi o desejo...


E os portadores do amor, descendentes dos que foram inoculados por minhas flechas, repovoarão o mundo, numa pandemia nunca vista, mas desejada em segredo por um grupo seleto e discreto – os chamados românticos – incompreendidos servidores do amor verdadeiro, que beirou a extinção. Até esta noite...


Guardarei minhas flechas, esconderei o meu arco e morrerei aqui, neste apartamento, num bairro afastado dos grandes centros. Com o tempo, meu corpo apodrecerá e será apenas o de mais um indigente. Se for encontrado, não será enterrado, mas estudado pela ciência, devido às suas características especiais. Asas. Incomum para humanos, natural para os Erosapiens sapiens. Desconhecidos até então. Até minha morte...

(Guilherme Ramos, 14/04/2013, 23h09, após assistir – várias vezes ao clipe “Give me Love”, de Ed Sheeran. A idéia inicial de conto era outra, mas minhas mãos não acompanharam o pensamento e só consegui escrever o que vocês acabaram de ler. Rssss...)

Imagem: Google.

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